segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O REI E O MENINO – HAITI

(Para Didier Dominique e o povo do Haiti)
(e para meu pai, Roland Klueger, que faria 88 anos hoje.)

Era uma vez um rei e um menino. Fico pensando se há alguma palavra que signifique, ao mesmo tempo, exaustão, terror, desespero e desesperança, tudo isto somado e elevado a décima potência, mas não encontro tal palavra. Só que era bem assim que estava o menino: tinha dois anos, encolhia-se de olhos catatônicos no vazio de uma calçada logo depois do terremoto do Haiti, e apareceu na televisão. Eram tantos em desespero em torno dele, eram tantos... Eram tantos os mortos em torno dele, eram tantos... Quem conseguiria prestar atenção em mais aquele menino dentro de tanta desgraça, a não ser aquele olho malicioso de uma televisão, que pegou o menino e o jogou no meu colo, sem que eu soubesse o que fazer com ele?
Era uma vez um rei e um menino. O rei era pura saúde, garbo e fidalguia: vestido com trajes tribais, tinha no rosto e no corpo os mesmo desenhos em branco, preto e vermelho que também estavam no escudo de couro que segurava na mão esquerda, pois na direita segurava a lança segura e certeira que o tornara rei tamanha a sua perícia ao caçar o leão. Ele era grande e espadaúdo, mas maior ainda era a sua fama, pois não só ao leão enfrentava: quando seu povo tinha fome, ele afrontava até os grandes elefantes, e todos viviam felizes no seu reino, bem alimentados e saudáveis, e o rei era feliz também.
Certo do poder da sua felicidade e da sua lança, o rei nunca entendeu como lhe caíra em cima aquela rede que o despojara do seu escudo, da sua lança, da sua força e da sua liberdade – como tantos outros da sua terra, teve que se curvar à chibata do traficante, aceitar a gargantilha e as algemas de ferro, resistir à longa caminhada da coleante corrente feita de gente e de ferros, viver a aviltância do navio negreiro.
A saúde antiga deu-lhe forças para chegar vivo àquela terra de degredo, de escravidão, e cruéis homens brancos de outra fala, à força de chicote, subjugaram-no e ele teve que se curvar, sem lança, sem pintura, sem escudo, e cultivar a cana que produzia o açúcar, o rum e a riqueza daqueles usurpadores da sua liberdade. Nunca mais ele foi feliz; nunca mais soube do seu povo e seu povo nunca mais soube dele, e só o que havia de belo era o mar daquela terra, todo verde, azul e transparente. Houve, também, uma mulher que reconheceu nele a fidalguia conspurcada, e antes de morrer prematuramente, o rei teve um filho, negro e lindo como ele, e que na verdade era um príncipe – mas foi um príncipe que nunca teve uma lança e que não conheceu os desenhos e as cores tribais – ao invés de leões, só houve para ele o látego do algoz.
Outros príncipes foram gerados na descendência do rei, naquela terra que parecia incrustada num mar de turmalinas, e todos tiveram a vida miserável de escravo, enquanto seus senhores tinham as vidas nababescas dos poderosos.
Um dia, já não dava mais de suportar. Eles eram mais de 500.000 negros, e os senhores eram 32.000, certos que a força do látego manteria aquela situação indefinidamente. E junto com os demais escravos os descendentes do rei lutaram e lutaram e venceram – desde 1791 a 1803 – nesse último ano venceram até o exército que Napoleão Bonaparte mandara da França. E conquistaram a liberdade!
O Haiti foi o primeiro país da América dita Latina a ser livre, a fazer a independência, isto lá em 1804, antes de todos os demais. É de se imaginar o frio que correu na espinha de tantos outros colonizadores brancos: uma república, e de negros? E se a coisa pega? Olha que escravo está tudo cheio por esta América de meu Deus! Que se faz, ai ai ai?
De modo geral, o que se podia fazer eram independências rápidas, feitas por brancos (e elas aconteceram uma depois da outra) e muita matança de negros, para evitar que a coisa trágica se repetisse e sujasse o bom nome da dita civilização européia! Sei bem como foi tal matança no Brasil: foi na guerra do Paraguai, foi na revolução Farroupilha... – não estou inteirada de como foi nos outros países, mas que a matança foi grande, lá isso foi. E a “civilização” branca quase pode respirar, aliviada – só que havia aquele pequeno país, aquele maldito pequeno país lá incrustado naquele mar de ametista, o tal do Haiti, que era um país de negros – e nunca que a tal “civilização” branca poderia deixar aquilo lá florescer de verdade – era afronta demasiada.
E nos dois últimos séculos o Haiti sofreu tudo o que é possível sofrer-se para que sua crista se quebrasse: invasões, ditaduras, golpes de Estado, o bedelho dos brancos sempre indo lá e tentando botar tudo a perder, mas a valentia daquele povo parecia indomável, e o Haiti, mesmo não conseguindo florescer como deveria, era exportador de café, de arroz, era o maior produtor de açúcar do mundo, era um país que tinha seus filhos bem alimentados a arroz, a banana, os porcos abundavam e produziam pratos deliciosos, acompanhados de banana frita, iguaria tão caribenha...
Foi agora, agorinha, no tempo da violência do neoliberalismo, o que nos leva a 1980, que o complô dos brancos resolveu que já não dava mais, que era muito absurdo em plena América ver um país de negros sobrevivendo e sobrevivendo impunemente... Então foi programada a tomada definitiva do Haiti. Foi daquelas coisas mais malévolas que as mentes doentias podem programar visando lucro: aos poucos, introduziram-se as pragas necessárias na ilha incrustada num mar de safira, e morreram todos os porcos, e depois todo o arroz, e depois toda a banana, e depois veio a praga do café.. . Aqueles negros corajosos não sobreviveriam, ah! La isso não poderia acontecer! Viveriam apenas para voltar à condição de escravos, e igualzinho como os europeus, em 1885, no Tratado de Berlim, dividiram o mapa da África à régua, causando as milhares de desgraças que estão acontecendo até hoje, os brancos do neoliberalismo pegaram o território do Haiti e o dividiram em 18 futuras zonas francas onde não haveria lei, onde o Capital imperaria, e onde, as pessoas tão famintas que estavam assando biscoitos de argila para poderem ter algo no estômago trabalhariam, de novo, em regime de escravidão. Pode parecer que tal coisa é distante de nós, mas não é. O próprio vice-presidente do Brasil, José Alencar, é alguém tão interessado no assunto que até mandou seu filho para lá para cuidar dos seus futuros interesses imperialistas. E o execrável outro dia ainda saiu do hospital, depois de mais algumas cirurgias, sorrindo para as câmaras das televisões e declarando que poderia perder tudo na vida, menos a honra. Que honra pode ter um homem assim?
(Não consigo me furtar de contar de que forma a nefanda honra do vice-presidente atingiu diretamente minha família, recentemente. Numa só tarde, uma das empresas dele, aqui na minha cidade de Blumenau/SC/Brasil, a Coteminas, demitiu 600 empregados, assim sem mais nem menos. Três primos meus, lutadores pais de famílias, perderam o emprego sem entenderem muito bem por quê – o porquê é fácil: nas novas fábricas que o “honrado” vice-presidente anda montando lá nas zonas francas do Haiti, os novos empregados trabalharão pela décima parte do salário que os meus primos ganhavam – e o salário dos meus primos já não era grande coisa.)
Bem, então tínhamos um Haiti em petição de miséria, e daí veio o terremoto. Que poderia ter acontecido de melhor para o Capitalismo e o Imperialismo dos EUA? Até o palácio presidencial do governo títere ruiu – daqui para a frente é apenas tomar posse – já não há barreiras. Ao invés de ajuda humanitária (que eles não deram nem aos flagelados do furacão Katrina, em seu próprio território) os Estados Unidos estão, descaradamente, diante de todo o mundo, fazendo a ocupação militar do Haiti com o seu exército, e tudo parece bonitinho, com a Hilary indo lá para ver como é que estão ajudando... ajudando uma ova! Alguém já viu os Estados Unidos ajudar alguém de verdade?
Não deixo de louvar as tantas e tantas equipes de tantos e tantos países que lá estão, realmente levando ajuda humanitária para aquele povo quase que nas vascas da agonia – mas a semvergonhice do Capital está lá, também, sorrindo de felicidade com sua cara de caveira.
E então o olho de uma televisão espia lá aquele menino de dois anos arrasado pela exaustão, pelo terror e pelo desespero, encolhido num vazio de uma calçada, e o joga brutalmente no meu colo – e quando tento acalmá-lo acolhendo-o junto do meu coração, ele me conta do rei, seu antepassado – aquele menino moído pelo Capital e pelo terremoto é nada mais nada menos que um príncipe, e seu antepassado que foi rei e livre caçava leões e elefantes e alimentava um povo – o menino sabia, a família sempre contara adiante o seu segredo.
Céus, céus, o que fizeram com as gentes livres da África, que quiseram apenas continuar vivendo com dignidade naquela ilha de onde já não podiam sair? Quem vai cuidar daquele menino antes que ele retorne à condição de escravo de onde seus antepassados tanto tentaram sair?
Eu choro, Haiti, choro por ti, e por teu menino, e por aquele rei. Não sei fazer outra coisa além de chorar.

Blumenau, 17 de janeiro de 2010.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

VEREDA TROPICAL

É um grande terreno baldio bem no centro de Blumenau, coisa espantosa nestes tempos de especulação imobiliária.. Eu passo muito ali, mas só comecei a prestar atenção num dia do último verão, no auge do calor, tempo em que parecia que todas as plantas do mundo, grávidas de sementes, preparavam-se para a reprodução.
Naquele dia em que olhei primeiro, o terreno todo estava coberto por generoso capinzal de folhas finas, coisa assim de quase um metro de altura, explodindo de tanto verde, sendo que cada pé de capim tinha um longo fiapo carregado de espigas pejadas de sementes maduras. Tudo era fino, leve e bonito, naquele capinzal; parecia-se com um quadro holandês do século XVII. E lá, pousado nos finos fiapos que sustentavam as espigas, um imenso bando de passarinhos se deliciava comendo as sementes maduras. Era uma barbaridade de passarinhos, penso que centenas e centenas, pequenos e finos passarinhos que deveriam ser muito leves, pois conseguiam pousar sem problemas naqueles fiapos de capim. Eu fiquei a olhá-los, e de repente eles devem ter se assustado com alguma coisa, pois saíram numa revoada, fizeram uma curva no ar – e, sossegados, voltaram ao seu banquete, os pequeninos pés pousados naqueles finos fiapos de capim cheios de espigas maduras. Olhei-os por bastante tempo, e por diversas vezes se assustaram e revoaram – mas sempre voltaram àquela seara generosa feita de sementes de capim. No outro dia eles estavam lá de novo, e no outro também.
Um dia, os passarinhos sumiram – as sementes tinham-se acabado. Mas eu tinha ficado encantada com aquele capinzal que parecia até translúcido de tão verde, bem assim no meio da cidade, e não deixei mais de prestar atenção nele. E o verão acabou, e veio o outono, e o capim continuava lá, já um pouco menos viçoso, agora que passara sua época de reprodução. Imagino que os passarinhos não tenham comido todas as sementes, que muitas delas tenham caído ali no chão, prontas para hibernarem por alguns meses e nascerem na próxima primavera..
E o outono foi fazendo seu trabalho de destruição. A cada dia o capinzal perdia um pouco do seu viço; a cada dia o seu verde ia ficando mais próximo do marrom. Dia a dia, acompanhei o que acontecia naquele terreno baldio.
Um dia, o capim começou a cair, a morrer. E agora já não há mais capim, mas apenas uma palha escura e morta, agora que o inverno chegou mesmo. E então voltou aos nossos olhos o que houvera o tempo todo ali naquele terreno baldio: pedaços de plástico, de vidro, coisas de borracha, sobras de concreto – o lixo que as cidades produzem. Na minha mente, inclusive, ressurgiu o que houvera ali antes: um bar mal-afamado, chamado Vereda Tropical, que criava um certo escândalo na cidade, pois seus freqüentadores amanheciam o dia bebendo e às vezes punham-se a brigar já em plena luz do sol, quando esta é uma cidade que leva muito a sério a coisa da ordem e do trabalho, e se escandaliza quando há quem não vá para as fábricas antes das cinco horas da manhã, e acha que desempregado é alguém cheio de preguiça. Tanto escândalo causou aquele bar que a sociedade constituída não descansou enquanto não lhe passou um trator por cima.
E então, a natureza, benéfica, foi lá e criou aquele emocionante capinzal cheio de passarinhos, para mostrar às pessoas que aquela esquina podia ser LINDA! Pena que o inverno chegou, e eu descobri que debaixo daquele capinzal há o que sobrou do tempo das raivas e dos preconceitos, que nas raízes das coisas belas às vezes pode haver as sobras das coisas ruins. Pode funcionar como uma lição para as nossas vidas. Sempre poderemos criar capinzais cheios de passarinhos nos nossos corações.

Blumenau, 17 de Julho de 2003.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O DIREITO DE COMER GELATINA

A Salete foi menina temporã, nascida quase por engano, quando sua mãe já passava muito dos quarenta anos. Ela nasceu já com irmãos casados e sobrinhos. É importantíssimo, nesta história, contar desde já que a mãe, os irmãos, as cunhadas, os sobrinhos, toda a gente na casa de Salete era analfabeta, gente que não tivera a menor chance de aprender no passado e que não via o porquê de aprender mais tarde. Lá na casa dela defendiam-se coisas assim:
- “ Vacinas? Cruz credo, toda a nossa gente se criou sem tomar dessas besteiras! Nem morta que deixo filho meu tomar!”
Há que se considerar que Salete poderia ter seis irmãos vivos, mas só tinha três. Os outros, a falta de vacinas levara fazia tempo, pequenos ainda.
Não houve o que fizesse a mãe de Salete deixá-la tomar uma vacina – ela cresceu, mesmo, porque tinha saúde e sorte. Nem mesmo a madrinha conseguiu convencer a mãe.
Pois é, a madrinha. Quando se viu mãe de novo, D. Zulmira pediu à patroa que batizasse a menina, já que a patroa fora boa e dera enxovalzinho e tudo para a criança extemporânea. E a patroa levou a função a sério: não conseguiu nada com as vacinas, mas bateu pé quanto à escola: a Salete iria para escola, custasse o que custasse. A madrinha matriculava, comprava uniforme, comprava material, inventava histórias tenebrosas para a mãe da menina – o fato é que Salete foi para a escola desde o prézinho, a mãe se sentia obrigada ao ver a madrinha gastar dinheiro com aquelas bobagens de cadernos e livros.
Vamos dar um pulo na história. Tínhamos parado no prézinho – eu presenciei bem a coisa quando Salete já estava na quinta série. Mesmo aos trancos e barrancos, inteligente e esperta como era, na quinta série Salete estava plenamente alfabetizada e muitas outras coisas já aprendera, mas o seu grande diferencial em relação à família era a leitura. Pela primeira vez naquela família as pessoas podiam comer ... gelatina, ou pudim de caixinha, porque agora havia alguém que podia ler as embalagens e dizer como aquelas coisas deveriam ser feitas! Virou um luxo naquela casa comer gelatina, um luxo negado a todas as gerações anteriores daquela família. E a gelatina era só um símbolo: a capacidade de leitura de Salete modificava um monte de coisas para todo o mundo. Por exemplo, chegava gente naquela casa e dizia:
- “Dona Zulmira, a senhora pode fazer faxina para mim? É na rua tal, número tal.” – ou – “Fulano, estou precisando de um ajudante de pedreiro. Esteja amanhã cedo na rua tal, número tal.”
E, no mais das vezes, a gente daquela casa não conseguia chegar lá e perdia os empregos, porque não conseguia ler os nomes das ruas, os números das casas, o que estava escrito no ônibus. Eu presenciei estas coisas. E presenciei como Salete foi se tornando o centro da família: ela ia junto, achava o endereço, sabia o ônibus certo, ninguém mais perdia emprego ou oportunidade. Aí todo o mundo começou a dar valor à escola de Salete. Aí os sobrinhos dela começaram a ir para a escola também.
Hoje Salete é uma moça prestes a fazer vestibular. Quer ser professora. Ninguém mais que ela viu bem de perto a amargura de não se saber ler. Acho que quando ela alcançou o poder de fazer a sua família comer gelatina, inteligente como é, ela entendeu tudo. Você, que está lendo esta crônica, e que sempre comeu gelatina desde pequeno, saiba como é que é terrível o desconhecimento da leitura: até o direito de se comer gelatina pode ser tirado de quem não sabe as letras! Uma idéia é olhar aí em torno do seu mundo, para ver se alguém está sem esse direito. Sempre é tempo de encaminhar a tal pessoa para uma escola de adultos.

Blumenau, 22 de Julho de 2003.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Bento ou Benedito?

Quando eu era criança, eu via que o Brasil era como era. Depois cresci e li Gilberto Freire e passei a crer que vivíamos, mesmo, numa democracia étnica. Daí cresci mais e vivi mais, e fui vendo que a coisa não era bem assim, e veio Darcy Ribeiro e outros, mesmo assim eu acho que não estava nada preparada para o ato explícito de racismo institucionalizado ao qual assisti nesta semana.
Vejamos: eu liguei a televisão bem na horinha em que começou a sair uma primeira fumacinha lá na chaminé da capela Sistina, e logo a fumaça ela ficou branca! Era hora do Jornal “Hoje”, e a expressão “Habemus Papa” passou a estar na boca de todos, seguida da grande curiosidade: “Quem é, quem é?”Havia sido escolhido o alemão Joseph Ratzinger, e isto é assunto para que outra discussão! O que nos interessa, neste momento, é que quando se soube quem era o Papa, ele já havia escolhido seu nome de Papa, e o Jornal Hoje já estava devidamente calçado com a presença de um teólogo da USP, que dava explicações. Soube-se que o nome que o Papa escolhera significava “Abençoado”, e o teólogo foi taxativo: tanto em italiano, quanto em português, “Abençoado” significava “Benedito”, ou “Bento”. Então não havia dúvidas: Habemus Papa Benedito!
Por uns 30 minutos, no Brasil, tivemos o Papa Benedito XVI. O Jornal Hoje se estendia sem pressa com o teólogo da USP, quando de repente, uma meia hora depois, o nome do Papa passou para Bento. Eu cá estranhei: aquilo tinha cheiro de racismo! Lembrei-me de São Benedito, santo preto muito popular no Brasil, padroeiro das gentes negras – será que uma coisa não estava tendo a ver com a outra? Passei uma mensagem para uma amiga antropóloga na Alemanha, contando o que acontecia, e ela me respondeu: “Aqui ele é Benedikt. Eu acho que é racismo, sim!” Expus o caso para minha faxineira que viera nesse dia. Ela foi taxativa: “Bento fica melhor, tu não estás vendo? Benedito é nome di nego!” . Eram opiniões de áreas extremas. Telefonei para minha mãe e expus o caso – ela achava melhor não mexer com tais coisas. Então, só restava esperar. E esperei.
Nas horas seguintes, nos dias seguintes, fui vendo que a exclusividade do nome Bento pertencia ao Brasil (e agora descobri que a Portugal também). Na língua espanhola o papa é Benedicto; na língua alemã é Benedikt – na verdade, não pesquisei em muitos países, pois já conheço um bocado este Brasil onde “Benedito é nome di nego”, e posso entender este racismo que assola a minha gente, sob a capa de uma democracia étnica. E Portugal, bem ... se um dia fomos no embalo de Portugal, penso que hoje Portugal muito nos copia – basta ver o gosto dos portugueses pelas nossas novelas!
Taí o que queria falar. Se “Abençoado” , no Brasil, quer dizer Bento, e não Benedito, acho que São Benedito e nossos irmãos negros têm muito a ver com a coisa. Se na nossa língua não se aceita ter um Papa Benedito, eu acho que tem a ver com o mais descarado racismo, sim. Gilberto Freire que me perdoe, mas a tal democracia étnica está fazendo água.

Blumenau, 23 de abril de 2005.


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Meu Cachorro Atahualpa 7

(Para Júlia Beatriz Spézia, minha amiga que também está crescendo depressa)




Atahualpa está com dez meses e beirando os dez quilos – chegou àquele tamanho e peso que faz com que, quando corre pela casa atrás da sua adorada de borracha amarela, tire todos os tapetes do lugar. Também quando saímos para qualquer dos seus três passeios diários, tem ele força para me fazer andar na minha velocidade máxima enquanto caminha farejando o mundo como se o seu nariz preto e úmido fosse um periscópio, ou me botar a correr quando se põe a trote, atrás de qualquer coisa: uma borboleta, um passarinho, uma mosca, um amigo, uma idéia. Tenho que convir que tal estágio de vida do meu cachorro está me fazendo um bocado bem: a nova quantia de exercício levou embora uns quilinhos sobressalentes que estavam teimando em se fixarem em mim, e minha capacidade respiratória anda muito boa – sem contar que desenvolvi bíceps, de tanto carregar o meu bichinho. É que quem mora em condomínio, como eu, tem que carregar seu animal até sair para a rua – além do que o acostumei a se deixar levar no colo a cada vez que temos que atravessar uma rua.
Então, apesar dos dez meses e dos quase dez quilos, Atahualpa está tão acostumado a andar no colo, que se deixa carregar como um bebezinho, tanto de pé quanto deitado de barriga para cima.
O fato é que meu cachorro está ficando adulto, e eu acho que ele é o bichinho mais bonito do planeta, embora numa manhã destas uma moça olhou para ele e saiu correndo de tanto medo. Então dei uma cuidadosa avaliação na imagem do Atahualpa, e a verdade é que ele é o cachorro mais bonito do mundo, mas que também acabou criando uma expressão que deve ser bastante amedrontadora para quem não sabe da sua doçura e da sua propensão para brincar.
Se a gente o olha por cima, vê um comprido cachorro preto – mas se se encará-lo bem de frente, anda ele com a expressão que acreditamos tenham tido os vikings (pois já conheci alguns vikings de verdade e eles não eram nem parecidos com o que a gente imagina que tenham sido!), já que ao redor da sua barba amarelada, criou-se um halo de barba ruiva que lhe dá um ar bastante sinistro, se a gente não o conhecer. Não chegando a barba, sombrancelhas do mesmo amarelo ruivo, tufos de pêlos da mesma cor saindo-lhe das orelhas peludas e um colar no mesmo tom a lhe descer pelo peito dão-lhe um certo ar de leão, de feroz bicho do mato, e eu entendo muito bem porque aquela moça saiu correndo, ou porque outros transeuntes se afastam dele na rua, com um certo receio: será um ursinho de pelúcia ou um bicho feroz?
E ele está grande, um baita. Andei a medi-lo. Tentei primeiro com uma régua escolar, dessas de trinta centímetros – mal e mal a régua conseguia medir seu rabão de tamanduá! Saí a comprar uma trena, e não deu outra: meu cachorro está medindo UM metro, desde a ponta do nariz até a ponta do rabo, apesar de seu corpo ter apenas 35 centímetros de altura, já que ele tem pernas bem curtas, mas tão grossas, musculosas e potentes que, quando se põe a trotar, tem força para me arrastar atrás dele como se eu fosse feita de vento!
E seu pêlo de seda negra, ah! como está bonito, principalmente quando ele chega de algum acampamento, donde vem mais sujo do que se possa imaginar, e toma um caprichado banho com muito xampu! É um pêlo único, cada tufo nascendo para uma direção diferente, uma coisa indescritível de tão macia e bonita, que balança e se mexe conforme os movimentos que faz seu corpão de quase dez quilos, pura seda que não dá nem para contar.
Tenho uma amiga que fica insistindo para que eu mande aparar o pêlo do Atahualpa, para que faça o modelito tal ou tal, e fico toda ofendida: além de estarmos no inverno (e aquele pêlo ser o casaquinho dele), se aparar aquela revolução de seda negra que cobre o meu bichinho, ele passa a ser um cachorro como qualquer um – e já não será mais o Atahualpa! Pois Atahualpa é um cachorro único, tanto no gênio e na aparência, quanto dentro do meu coração!



Blumenau, 31 de agosto de 2008.

Atahualpa 6 - Carinho

(Para Adenilson Teles, no tempo em que ele tinha doze anos e trabalhava numa mercearia)


Um pouco antes de Atahualpa vir para a minha vida, eu perdi um grande, grandessíssimo, enorme amigo que era o jornalista Adenilson Teles. Teles foi matado por uma mulher que não podia perder um minuto na vida, e que fê-lo perder a vida num segundo, ultrapassando com velocidade numa lombada.
Teles morreu no finalzinho de outubro; Atahualpa veio para a minha vida no dia 6 de dezembro. Se hoje, quase um ano depois, eu ainda fico arrasada de dor quando me lembro do Teles, imaginem como foi lá no ano passado.
Teles fora o grande sonhador e batalhador para que tivéssemos uma rádio comunitária. Muito ele trabalhou, lutou e sofreu para que tal acontecesse, e a rádio estava legalizadinha, pronta para voltar ao ar sem mais entraves, quando ele partiu.
Fico pensando, agora, se Teles não ajudou às cegonhas dos cachorros para que Atahualpa viesse cair na minha vida quase que como por milagre, como uma forma de mitigar um pouco a minha dor.
Outra coisa a se contar nesta introdução é que na cidade de Blumenau, onde vivemos, quarenta graus de calor, no verão, é fichinha, e então, principalmente nas grandes férias coletivas entre Natal e Ano Novo, quase todo o mundo foge para as praias próximas, e a cidade fica como que às moscas. Todo o mundo que trabalhava na rádio comunitária iria sair, e a rádio seria fechada. Foi então que me ofereci: como uma homenagem ao Teles, eu ficaria na rádio durante alguns daqueles dias, e a manteria funcionando. E mudei-me para ela de mala, cuia e meus apetrechos de camping, o que incluía uma caixa com comida e água, o que foi providencial, pois não havia nadinha nadinha aberto onde se comprar comida lá no bairro da rádio. Os meninos que carregavam o piano da rádio deixaram para mim um colchão que eu podia botar no chão e dormir, lá dentro mesmo do estúdio. É claro que aquele pedacinho de cachorro preto e peludo mudou-se comigo para lá!
Como era quente, naqueles dias, lá dentro da rádio! Eu tinha que despertar um pouco antes das seis da manhã, para colocar a rádio no ar as seis, e a mantinha funcionando até as dez da noite. Passava grande parte do tempo fazendo seleções musicais e brincando com o meu filhote, já que pouco conseguia me concentrar para escrever ou ler, tamanho o calor infernal que me mantinha inundada em suor dia e noite, apesar de alguns ventiladores ligados ininterruptamente. E na hora de dormir arrumava uma cama para mim no colchão no chão, e fazia uma caminha com a fresca colcha de seda azul para o meu cachorrinho, assim bem pertinho do colchão, para que ele não se sentisse só.
Então, numa noite... apesar de ser tão peludo e do calor que fazia, Atahualpa deve ter sentido algum frio – afinal, ainda era um bebezinho – então, numa noite, eu senti pela primeira vez aquele cachorrinho que era como um bife esforçar-se para subir no meu colchão, que decerto lhe parecia muito alto, e mansamente, silenciosamente, esgueirar-se lençol afora, até vir a se abrigar bem juntinho a mim – acolhi-o no meu peito, abriguei-o com minha mãos, e ele dormiu ali, junto do meu coração, até que a manhã chegasse. Já não lembro quantas noites ficamos lá, mas ele repetiu aquele gesto de carinho e veio se colocar sob a minha proteção a cada noite, e era como se um elo novo estivesse se criando entre nós.
Lembrei-me muito de tal coisa nesta tarde de inverno, quando estamos mais ou menos acampados numa casinha de troncos que parece casinha de cinema, na pousadinha que passamos a freqüentar faz tempo, neste lugar chamado Nova Rússia.
Cansada como ando, depois de comer alguma coisa á guisa de almoço, fui dormir um soninho na cama, com a ajuda do meu cobertor vermelho e da minha coberta de penas. De repente, no meio do sono, senti que havia mais alguém na cama. Mesmo semi-inconsciente, dei-me conta que, apesar dos nove meses e dos nove quilos, Atahualpa continua sendo um filhote que sente frio, pois era ele que se movimentava devagarinho sobre o lençol e vinha se abrigar em silêncio sob a maciez da minha coberta de penas. Ele virou um cachorrão peludo, mas dentro dele continua existindo aquela necessidade de calor e de carinho que o fazia subir no meu colchão lá na altura do Ano Novo. Laços de carinho, assim, não se quebram com facilidade!
Então, me deu tanta saudade do Teles!


Blumenau, 01 de Agosto de 2008.

Meu Cachorro Atahualpa 5

(Para João Cândido Spézia de Souza, o Joãozinho da Lisi e do João Grandão)


Aos dois meses, quando chegou na minha casa, Atahualpa foi morar dentro de uma caixa de papelão, na área de serviço. Bem encostadinho à sua cama, eu deixava um rádio ligado bem baixinho, nas noites, para que ele não se sentisse sozinho. Era dezembro; portanto, verão, e sua primeira caminha foi uma colcha de seda azul e branca que existia na minha casa desde o Natal em que eu tinha três anos. É claro que na hora em que eu assistia aos jornais na televisão ele ficava no meu colo, todo embrulhadinho nos mais lindos panos africanos que eu tinha, e que também andava por aí no meu colo, inclusive no meu carro, enquanto eu dirigia, pois era um pedacinho de nada de cachorro, um bife, como já disse outro dia. Comprei uma coleirinha verde número zero, que lhe ficava grande, e demos os primeiros passeios juntos, e ao primeiro medo, ele corria a se esconder sob a barra dos meus vestidos, que costumam ser compridos.
Aos poucos, porém, ele foi se apossando do meu escritório, e tenho coleções de fotos dele debaixo da minha mesa ou sobre o tapete azul que há defronte dela. Ficava ali por todo o tempo em que eu trabalhava, e lá pela meia noite, quando eu ia dormir, levava-o para a área de serviço, acomodava-o direitinho na caminha azul e branca e lhe desejava boa noite – e acho que ele nem se mexia a noite toda, pois, nas manhãs, quando tornava a abrir a porta da área de serviço, ele ainda estava deitado do mesmo jeito, e então se espreguiçava todo, enquanto abanava o rabinho de nada!
Atahualpa era tão pequenino que, ao chuveiro, eu lhe dava banho segurando-o junto ao meu peito, e ele chorava o tempo todo, durante o banho, como se fosse um nenenzinho. Morria de frio depois dos banhos – eu o embrulhava com diversas voltas na maior toalha que tenho, depois o secava com uma segunda toalha, e o frio não passava, não importava o calor que fizesse – num instante ele se tornou dono, também, da minha linda colcha cearense amarela, que eu usava sobre o sofá da sala – para se aquecer, tinha que embrulha-lo na colcha amarela e ajeita-lo dentro de uma cesta tecida pelos índios Xokleng, legítimo artesanato pelo qual eu tinha o maior carinho, e colocar a cesta sobre um banquinho, bem encostadinha em mim, enquanto ficava trabalhando no computador. Era lindo, aquele cachorrinho peludo e preto dentro daquela colcha amarela!
Ele era tão friorento que comecei a pensar seriamente num enxoval de inverno que o abrigasse. Dei uma olhada nos armários, e encontrei um acolchoado daqueles que faz 30 anos que não é usado. Dobrei-o em quatro partes – parecia um tamanho bom para um cachorro que um veterinário me dissera que acabaria tendo uns 8 quilos. Então comprei flanelas xadrez, bem másculas, e pedi para a Rovena, a minha costureira, para fazer duas lindas capas de colchão para ele. Antes que o primeiro frio chegasse, lá estava Atahualpa com seu colchãozinho chique, do qual ele se apossou ao primeiro olhar. Naquela altura, ele deveria estar com uns cinco meses – agora, aos oito, ainda filhote (mas já com os oito quilos), ele já quase não cabe mais naquele colchão- e para não alongar demais esta crônica, conto como está, atualmente, a cama do Atahualpa, neste tempo de frio: além do colchãozinho inicial, tem um edredon do meu uso pessoal, dois travesseiros e uma manta de lã andina, tudo combinando na cor, e tive que comprar uma série de fronhas novas, pois, além dos travesseiros da cama, ele precisa de dois travesseiros no carro, para poder se sentir confortável. (E há que multiplicar isto por dois, pois há que trocar tudo a cada semana, para ele ficar limpinho.)
Na prática, na prática, atualmente tenho que lavar uma maquinada de roupa a mais, a cada semana, só para dar conta da roupa de cama do Atahualpa (sem contar as toalhas de banho).
Ter um cachorrinho é uma coisa fascinante, mas que dá trabalho, lá isso dá! Mas como eu poderia viver, hoje, sem ele?


Blumenau, 14 de Junho de 2008.